"Sabemos que a austeridade teve já resultados catastróficos na vida material (e na saúde e na morte) dos portugueses. Sabemos menos como ela afeta a prática da democracia. Muito pouco conhecemos dos seus efeitos na vida psíquica e espiritual e no nosso ânimo vital. A verdade é que se criou uma atmosfera com a ditadura das finanças que contamina e envenena a vida. Como no reino do Rei Ubu, «mestre das Phunanças».
O discurso incessantemente matraqueado sobre as «metas orçamentais», as percentagens das taxas de desemprego, de pauperização, da fome, os mil gráficos sobre toda a espécie de fenómenos sociais, fazem tudo passar pelos números. Estes rebatem-se sobre as coisas, sobre os pensamentos, os afetos, as relações entre os seres, sobre o prazer e a dor, sobre as ambições e os sonhos. Rebatem-se e absorvem-nos. O prazer deixa de existir em si, é condicionado e avaliado pelo seu custo, tornando-se mesmo o prazer do preço.
Não só se contêm os gestos, se reduzem os possíveis de uma vida, se encolhe a existência, se abafa ainda mais, mas é a própria textura dos sonhos que adoece, se limita e petrifica. Deixou-se de sonhar. É um assassínio do espírito."
José Gil In Visão nº 1053 (9 de Maio de 2013)